EMENTA Recurso extraordinário com agravo. Julgamento sob a sistemática da repercussão geral. Constitucional. Processual penal. Aparelho celular encontrado fortuitamente no local do crime. Acesso à agenda telefônica, aos registros de chamadas e às fotografias arquivadas no aparelho sem prévia autorização judicial. Condenação em primeira instância. Acórdão recorrido em que se reconheceu a ilicitude da prova. Violação do sigilo das comunicações (CF, art. 5º, inciso XII). Aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada. Absolvição do recorrido por insuficiência de provas. Alteração considerável do contexto fático e normativo. Transformação tecnológica. Superveniência do MCI, da LGPD e da EC nº 115, de 2022. Direito à proteção dos dados pessoais nos meios digitais. Autodeterminação informacional. Proteção jurídica especial e autônoma. Direitos fundamentais à vida privada e à intimidade. Superação do entendimento firmado no HC nº 91.867/PA. Necessidade de consentimento ou de prévia autorização judicial para acesso aos dados contidos no aparelho celular apreendido em prisão em flagrante. Contemporização desse entendimento nas situações de encontro fortuito do aparelho no local do crime. Identificação do autor do fato ou do proprietário do aparelho celular. Licitude da prova. Restabelecimento da condenação. Possibilidade de preservação cautelar dos dados. Recurso provido. I. Caso em exame 1. No caso dos autos, o aparelho celular foi encontrado fortuitamente no local dos fatos e apreendido pela autoridade policial (CPP, art. 6º, inciso II). A identificação do autor do delito decorreu do exame da agenda telefônica, dos registros de chamadas e de fotografias constantes do aparelho celular pelos agentes policiais, sem consentimento de quem de direito ou prévia autorização judicial, o qual permitiu a coleta de evidências que nortearam a realização de diligências que culminaram na identificação e na prisão do autor do fato (flagrante impróprio) e em sua posterior condenação, em primeira instância, pelo crime de roubo. II. Questão em discussão 2. A controvérsia constitucional posta nos autos consiste em saber se a autoridade policial pode acessar, sem prévia autorização judicial, os dados armazenados em aparelho celular encontrado fortuitamente no local do crime e apreendido nos termos do art. 6º, inciso II, do CPP. III. Razões de decidir 3. Os smartphones já eram realidade no país em 2013. Tais aparelhos multifuncionais, além de servirem de instrumento para os serviços ordinários de telefonia móvel, permitem a produção, o armazenamento, a transmissão e a reprodução de arquivos dos mais diversos formatos (textos, imagens, áudios e vídeos) e – mais que isso – viabilizam o acesso amplo e irrestrito à internet e, por conseguinte, às redes sociais, aos provedores de e-mail, às plataformas bancárias e de e-commerce, a uma miríade de sites e blogs e aos inúmeros aplicativos de mensagens instantâneas, inclusive gratuitamente. Graças aos smartphones, “o mundo passou a caber na palma da mão”. Mas, à medida que isso acontecia, as informações pessoais também se concentraram nos aparelhos celulares. Hoje, as múltiplas funcionalidades dos aparelhos celulares geram dados e metadados que são registrados na memória física do aparelho, ou “em nuvem”, e podem ser facilmente acessados, rastreados e/ou recuperados. 4. Examinados em conjunto, dados e metadados revelam um espectro enorme de dados pessoais, o que torna possível uma investigação completa e – diga-se de passagem – muito eficiente acerca das preferências pessoais, das relações familiares e interpessoais, dos hábitos de vida, de trabalho e de consumo e, em última análise, da forma de pensar, de agir e de decidir de determinado indivíduo. Isso sem falar, obviamente, das facilidades que o acesso proporciona para a intrusão indevida e “para o futuro”, a partir da instalação de softwares “espiões”. 5. A possibilidade de se acessar, por meio de aparelhos celulares, bem mais que metadados relativos à comunicação telefônica desloca a discussão travada nos autos para a questão da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (CF/88, art. 5º, inciso X), do direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais (CF/88, art. 5º, inciso LXXIX, introduzido pela Emenda Constitucional nº 115, de 2022), e do direito à autodeterminação informacional, os quais conferem proteção jurídica especial e diferenciada aos dados pessoais armazenados e justificam a superação do entendimento firmado no HC nº 91.867/PA para se construir uma solução mais condizente com a nova realidade. 6. Após revisitar os precedentes sobre a matéria, verifica-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acabou encampando, ao menos em parte, o texto seminal do Professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, para quem, “[o] sigilo, no inciso XII do art. 5º, está referido à comunicação, no interesse da defesa da privacidade”. Isso não significa, contudo, que o texto constitucional asseguraria proteção jurídica apenas e tão somente à “comunicação de dados”, isto é, ao “fluxo comunicacional”, ou aos “dados em trânsito”. Como lembrou Ferraz Júnior, os “dados estáticos”, ou seja, os “dados armazenados” também são passíveis de proteção jurídica e, embora não se revistam sempre e incondicionalmente de caráter sigiloso, podem alcançar tal qualidade a depender das circunstâncias, encontrando guarida, por exemplo, no disposto no art. 5º, inciso X, do texto constitucional. 7. A Emenda Constitucional nº 115, de 2022, ao introduzir no art. 5º da Constituição o inciso LXXIX, segundo o qual “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais” e, antes dela, as Leis nº 12.695/14 e nº 13.709/18, que instituíram no ordenamento jurídico brasileiro, respectivamente, o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados, passaram a conferir proteção jurídica especial e autônoma aos dados pessoais. Assim, enquanto o primeiro diploma legal elevou ao patamar de direito dos usuários de internet a inviolabilidade e o sigilo de suas comunicações privadas armazenadas e o não fornecimento de seus dados pessoais, a segunda lei alçou a proteção jurídica dos dados pessoais a uma categoria autônoma com relação aos direitos à privacidade e à intimidade (CF, art. 5º, inciso X). 8. Não se pode olvidar, ainda, que o direito à privacidade, apesar de relativamente recente, passou – e ainda passa – por considerável ressignificação. É dizer, no contexto da sociedade atual, a possibilidade de o indivíduo proceder ao controle dos dados que dizem respeito à própria pessoa – porque eles consistem em manifestação de sua personalidade – é conditio sine qua non para a preservação de sua personalidade e para o desenvolvimento pleno de sua autonomia. Isso porque é o direito à privacidade que assegura a cada indivíduo um espaço próprio de experimentação, no qual é possível a cada qual expressar “sentimentos, reflexões, visões de mundo e experiências pessoais sem medo de estar sendo observado por órgãos estatais” (GRECO, Luís; GLEIZER, Orlandino. A infiltração online no processo penal – Notícia sobre a experiência alemã. Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre, v. 5, n. 3, set./dez. 2019, p. 1495). IV. Dispositivo e tese 9. Recurso extraordinário com agravo ao qual se dá provimento para se reconhecer a licitude da prova e se restabelecer a sentença condenatória proferida em primeiro grau de jurisdição, fixando-se a seguinte tese de repercussão geral: “1. A mera apreensão de aparelho celular, nos termos do art. 6º do CPP ou em flagrante delito, não está sujeita à reserva de jurisdição. Contudo, o acesso aos dados nele contidos deve observar as seguintes condicionantes: 1.1 Nas hipóteses de encontro fortuito de aparelho celular, o acesso aos respectivos dados para o fim exclusivo de se esclarecer a autoria do fato supostamente criminoso, ou quem seja o proprietário do aparelho, não depende de consentimento ou de prévia decisão judicial, desde que justificada posteriormente a adoção da medida. 1.2 No caso de aparelho celular apreendido por ocasião de prisão em flagrante, o acesso aos respectivos dados está condicionado ao consentimento expresso e livre do titular dos dados ou de prévia decisão judicial (cf. art. 7º, inciso III, e art. 10, § 2º, da Lei nº 12.965/14) que justifique, com base em elementos concretos, a proporcionalidade da medida e delimite sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade, à proteção dos dados pessoais e à autodeterminação informacional, inclusive nos meios digitais (art. 5º, incisos X e LXXIX, da CRFB/88). Nesses casos, a celeridade se impõe, devendo a autoridade policial atuar com a maior rapidez e eficiência possível e o Poder Judiciário conferir tramitação e apreciação prioritárias aos pedidos dessa natureza, inclusive em regime de plantão. 2. A autoridade policial poderá adotar as providências necessárias para a preservação dos dados e metadados contidos no aparelho celular apreendido antes da autorização judicial, justificando posteriormente a adoção da medida. 3. As teses acima enunciadas só produzirão efeitos prospectivos, ressalvados os pedidos eventualmente formulados pelas defesas até a data do encerramento do presente julgamento”.
(ARE 1042075, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 25-06-2025, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-s/n DIVULG 23-09-2025 PUBLIC 24-09-2025)