Ementa: Penal e Processo penal. Agravo regimental em habeas corpus. Requisição direta de dados fiscais e bancários pelo Ministério Público à Receita Federal, sem autorização judicial e mesmo em um caso em que o auditor entendeu não ser cabível a representação fiscal para fins penais. Impossibilidade. Violação do direito à intimidade. Ordem de habeas corpus concedida para restabelecer a sentença que rejeitou a denúncia. I. Caso em exame 1. Trata-se de agravo interposto contra decisão da eminente relatora que negou seguimento a habeas corpus impetrado contra acórdão da Sexta Turma do STJ. O ato impugnado manteve acórdão do TRF da 2ª Região que, reformando decisão de primeiro grau, recebeu denúncia proposta contra contribuintes pela suposta prática de sonegação fiscal, com base em dados fiscais e bancários requisitados pelo MPF à Receita Federal, sem ordem judicial e mesmo em um caso em que o auditor entendeu não ser cabível a representação fiscal para fins penais. II. Questão em discussão 2. A controvérsia consiste em saber se o Ministério Público pode requisitar diretamente ao fisco, sem ordem judicial, dados sigilosos dos contribuintes, nas hipóteses em que o auditor lavra auto de infração por omissão de rendimentos, mas entende não ser o caso de aplicar a multa qualificada do art. 44, §1º, da Lei 9.430/96 nem de remeter representação fiscal para fins penais ao MPF. III. Razões de decidir 3. Questões preliminares 3.1 Alegação de perda de objeto do agravo devido à celebração de acordo de não persecução penal pelos réus. Fato superveniente que não impede a discussão sobre a validade das provas, cujo acolhimento pode conduzir ao trancamento da ação penal por falta de justa causa. 4. Mérito 4.1 No julgamento das ADIs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859 e do RE 601.314, submetido ao rito da repercussão geral (tema 225), o Plenário entendeu que é lícito o compartilhamento de documentos bancários por instituições financeiras com o fisco, desde que os dados transferidos se limitem a informes sobre a identificação dos titulares das operações econômicas e dos montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados (§2º do art. 5º da LC 105/2001). 4.2. Posteriormente, no julgamento do RE 1.055.941, rel. Min. Dias Toffoli, em que se discutia, à luz dos arts. 5º, X e XII, 145, § 1º, e 129, VI, da Constituição, a possibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal, a Corte fixou a seguinte tese de repercussão geral (Tema 990): 1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios. 4.3. Não obstante a Corte tenha autorizado a Receita Federal a compartilhar cópia integral dos autos do procedimento fiscal com órgãos de investigação criminal, isso não indica que o caminho inverso possa ser percorrido mediante requisição do Ministério Público, sem autorização judicial. 4.4. Isso porque, afora os casos específicos de compartilhamento de informações pela autoridade fazendária previstos no art. 198 do CTN, entre os quais se inclui a representação fiscal para fins penais, qualquer intercâmbio de dados sigilosos do processo administrativo fiscal só pode ocorrer mediante autorização do juiz competente. 4.5 No caso dos autos, não ocorreu nenhuma das hipóteses previstas em lei. Aqui, o MPF requisitou informações fiscais e bancárias do contribuinte, consolidadas em processo administrativo fiscal, mesmo num caso em que os auditores entenderam não caber representação fiscal para fins penais. Ademais, o procedimento administrativo em que o MPF expediu a requisição não investigava a empresa dos pacientes, mas sim a atuação funcional dos agentes da Receita Federal, a partir da notícia de que, num caso específico, associado a outra empresa, os auditores teriam deixado de expedir a representação fiscal para fins penais com base na aplicação literal do art. 2º, inciso I, do Decreto 2.730/1998. 4.6. No julgamento do RE 1.393.219, rel. Min. Edson Fachin, DJe 1.7.2024, a Segunda Turma enfatizou que não obstante a lei reconheça o poder de requisição do Ministério Público, essa prerrogativa deve ser exercida em consonância com o direito à intimidade, que preserva o sigilo bancário e fiscal do contribuinte. Em seu voto, o eminente relator afirmou que, embora a tese firmada pelo Plenário no tema 990 autorize o fisco a encaminhar cópia do processo fiscal aos órgãos de investigação criminal, o Tribunal não permitiu que o MPF requisite diretamente à Receita dados bancários e fiscais dos contribuintes, sem ordem judicial. IV. Dispositivo 5. Ante o exposto, tendo em vista que ação penal contra os pacientes está lastreada apenas em dados fiscais e bancários requisitados pelo MPF, sem ordem judicial e mesmo em um caso em que o auditor fiscal não elaborou representação fiscal para fins penais, concedo a ordem de habeas corpus para restabelecer a sentença que rejeitou a denúncia.
(HC 200569 AgR, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 29-10-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 20-05-2025 PUBLIC 21-05-2025)