Ao mestre Paulo de Barros Carvalho (1938-2025)
A convite dos professores Paulo Ayres Barreto, Maria Leonor Leite Vieira e Robson Maia Lins, tive a oportunidade, no dia 21 de junho de 2023, de fazer a apresentação do professor Paulo de Barros Carvalho antes de sua tradicional conferência no Congresso do Instituto Geraldo Ataliba (Idepe), então em sua 38ª edição.
Para lograr o intento, reli as principais obras dele para, com isso, construir uma apresentação que permitisse uma visão do jurista e, por intermédio deste, da pessoa (e não o contrário).
O ensaio a seguir, ora trazido a lume, é o fruto dessa intervenção.
O texto é, neste momento, especialmente dedicado aos familiares, sócios, amigos e alunos do professor Paulo, que, em todo o país e alhures, hoje sentem a falta daquele que ensinava sempre com muita elegância, afabilidade e rigor lógico.
Nascido em São Paulo, filho do pernambucano Leonardo de Barros Carvalho e da gaúcha Dulce Rosa Cruz, Paulo de Barros Carvalho sempre manteve com o Nordeste uma relação de afeto e de intercâmbio intelectual, especialmente com Pernambuco, terra não apenas de seu pai, mas também do professor Lourival Vilanova.
A atenção devotada ao Nordeste lhe foi retribuída de várias formas: recebeu, dentre outros, os títulos de cidadão pernambucano, cidadão paraibano, cidadão baiano, cidadão do Recife, cidadão natalense, cidadão pessoense e cidadão honorário de Caicó — sem mencionar o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Potiguar.
Essas honrarias, que se somam a outras tantas, aqui e alhures, como o título de Doutor Honoris Causa da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, a mais antiga das Américas, refletem o valor de Paulo de Barros Carvalho, cuja história está atavicamente imbricada à do direito tributário brasileiro.
É sobre ambas — mutuamente implicadas — que tratarei nas linhas a seguir.
O direito tributário e a vida de Paulo de Barros Carvalho
O cenário em meados da década de 1960
Quando Paulo de Barros Carvalho se bacharelou em direito, em 1965, o direito tributário não era disciplina autônoma. Suas questões eram tratadas pela ciência das finanças, criticada pela ausência de rigor científico e pelo sincretismo com a economia e outras áreas.
Efetivamente, muito embora já existisse, em fins do século 18, um núcleo de princípios sobre finanças públicas, sua natureza era mais econômica e política do que jurídica — característica que se manteria, embora em menor grau, até meados do século 20.
Para além disso, havia outro óbice ao desenvolvimento do direito tributário no Brasil: a doutrina nacional da primeira metade do século 20 o percebia como um sub-ramo do direito administrativo.
Para além disso, o direito administrativo brasileiro daquele período era derivado de obras italianas dos anos 1920 e 1930 que, a seu turno, alicerçavam-se em pensamentos de autores alemães do fim do século 19, como Paul Laband e Georg Jellinek. Em suma: era um direito administrativo que, sem surpresas, visualizava a relação tributária como sendo de sujeição do contribuinte ao Estado — e não como verdadeira relação jurídica, na qual Fisco e cidadão possuem direitos e deveres recíprocos.
Foi somente em 1963 que surgiu a primeira obra brasileira efetivamente dedicada a um estudo do direito tributário com o rigor metodológico que se fazia necessário – e com a necessária ruptura com os paradigmas anteriores, que é o gatilho para os verdadeiros avanços científicos, como nos ensinou Thomas Kuhn.
Trata-se da Teoria Geral do Direito Tributário, escrita por Alfredo Augusto Becker, que viria a ser tornar nacionalmente conhecido, futuramente, pelas mãos de Paulo de Barros Carvalho.
O então recém-formado Paulo, com a sua muito própria sagacidade jurídica, logo percebeu que havia, naqueles escritos, algo diferente — embora a obra não tivesse, até então, ganhado maior repercussão, fato agravado pelo afastamento de Becker da vida acadêmica (que somente a ela retornaria 26 anos depois, embora de forma breve, com a publicação do seu Carnaval Tributário, em 1989).
A relevância da teoria geral do direito tributário
O papel de Becker no direito tributário brasileiro pode ser comparado ao de Jeremy Bentham para a ciência do direito, até mesmo em seu estilo redacional, levemente ácido.
Bentham criticava o sistema de Common Law britânico, nominando-o Dog Law — “direito dos cães”. O cachorro do século 18 era adestrado por meio da violência. Ao fazer algo errado, era fisicamente punido. Assim, aprendia — de forma dolorosa — o que não poderia fazer.
Para Bentham, o mesmo ocorria com o cidadão britânico. Os enunciados legais do Parlamento eram dotados de elevado grau de indeterminação conceitual, o que dificultava sua compreensão pelos cidadãos. Ademais, o sistema de Common Law conferia elevada discricionariedade aos juízes, tornando difícil qualquer previsão sobre a leitura, pelo Judiciário, do conteúdo das obscuras regras editadas pelo Parlamento. Desse modo, os ingleses levavam suas vidas exatamente como os cães — fazendo tudo o que queriam dentro do que compreendiam, até serem colhidos pela sanção judicial, que finalmente lhes ensinava como separar o certo do errado.
Foi dentro dessa crítica ao sistema vigente que Bentham formulou a distinção entre a teoria do direito crítica (censorial jurisprudence) e a teoria do direito descritiva (expository jurisprudence). Com isso, Bentham procurou distinguir entre o que o direito efetivamente era (teoria analítica ou descritiva) e o que o direito deveria ser, embora não fosse (teoria crítica). A aproximação analítica de Bentham segregava direito e moral, de modo a conferir previsibilidade aos enunciados positivados — o que era impossível no cenário até então vigente.
Becker, assim como Bentham, buscou imprimir método ao direito. O jurista gaúcho pretendeu tanto afastar o direito tributário de outras ciências, como abordar temas dogmáticos por meio da teoria geral.
Os problemas endereçados por Bentham e Becker eram similares, sendo que ambos se dedicaram a conferir cientificidade ao direito, afastando considerações de ordem moral (subjetiva) do processo de (re)construção da norma jurídica.
A saga pela originalidade e a criação da regra-matriz de incidência tributária
Identificando em Becker um bom interlocutor, Paulo de Barros Carvalho leu, por sua sugestão, três obras fundamentais: Curso de Linguística Geral, do suíço Ferdinand de Saussure; As relações entre a Ciência da Linguagem e as demais Ciências, do russo Roman Jakobson; e Semântica, do húngaro Stephen Ullmann.
A partir disso, Paulo vislumbrou que a chave para a solução dos problemas práticos do direito não residia na descrição das normas vigentes e sua comparação com as de sistemas jurídicos distintos (especialmente o italiano, como era comum à época), mas sim na necessária compreensão de que o direito é um processo linguístico e, com essa visão, precisa ser operado para obtenção de soluções para os problemas práticos.
Já com a bagagem de ter escrito, em 1973, uma tese de doutoramento que, nas palavras de Geraldo Ataliba, propunha “uma revisão completa dos próprios pontos de partida que a doutrina se habituou a desenvolver de modo convencional” — publicada em 1974 como Teoria da Norma Tributária —, Paulo de Barros Carvalho não poupou esforços para concretizar a novel abordagem do Direito Tributário que grassava em seu intelecto.
Sempre à busca de pensamentos originais, independentemente da origem geográfica do autor, Paulo, já doutor em direito e professor da PUC-SP, encontrou nas obras do pernambucano Lourival Vilanova terreno fértil para aprimorar o uso da lógica jurídica e da linguagem em prol do direito tributário.
Ao mesmo tempo em que se dedicava a inovar a ciência jurídica por meio de seus estudos, publicações e aulas, Paulo de Barros Carvalho passou a exercer importante liderança acadêmica, assumindo, em 1977, a Presidência do Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários). De uma entidade embrionária, Paulo de Barros Carvalho a transformou na maior empreitada de formação de pesquisadores do Direito Tributário do País, que hoje se faz presente em dezenas de capitais e cidades relevantes espraiadas por todo o território nacional.
Em 1981, Paulo de Barros Carvalho conquista o grau de livre-docente em direito tributário, com a tese A regra-matriz do ICM.
Quatro anos depois, torna-se professor titular de Direito Tributário da PUC/SP. Nesse mesmo ano, 1985, publica seu Curso de Direito Tributário, republicado em mais de 30 edições. Seus capítulos IX a XI trazem a lume um novo recurso analítico para a tributação brasileira: a regra-matriz de incidência tributária, concebida a partir de seu disruptivo Teoria da Norma Tributária e aprimorada com seus estudos de lógica e semiótica.
O êxito dessa proposta metodológica pode ser demonstrado com um dado singelo: há 305 acórdãos e 628 decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal que se valem da regra-matriz de incidência para solucionar casos difíceis em matéria jurídica (não apenas tributária). Os números e a autoridade de quem os produziu falam por si, tornando desnecessária ulterior delonga sobre a relevância dessa contribuição ao direito brasileiro.
O exposto até aqui já seria suficiente para dizer que Paulo, efetivamente, mudou o direito tributário brasileiro para melhor.
Ocorre que a busca pelo saber e pelo crescimento pessoal não possui — felizmente — limitações. E isso levou Paulo a um novo e especial capítulo em sua vida acadêmica, que igualmente conferiu novos matizes ao direito tributário no Brasil, como se verá a seguir.
2.4. A ascensão à cátedra de direito tributário da USP e a compreensão da incidência jurídica como fenômeno linguístico
Em 1997, Paulo de Barros Carvalho torna-se também professor titular de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP, aprovado em concurso público com a tese posteriormente publicada sob o título Direito Tributário – fundamentos jurídicos da incidência.
Tomando a linguagem como constitutiva da realidade, na linha de Heidegger, para quem “a palavra é a morada do ser”, Paulo de Barros Carvalho dá um passo adiante em sua caminhada lógico-semântica.
Novamente desafiando o que era comumente aceito pela comunidade jurídica, a obra Fundamentos Jurídicos da Incidência sustenta que a incidência tributária não é infalível, com a automática instauração do consequente após a ocorrência do fato previsto no antecedente da regra-matriz.
Ao contrário: somente haverá incidência se houver o relato, em linguagem competente, da ocorrência do evento jurígeno. Do contrário, ele permanecerá alheio à incidência e não terá consequências jurídicas. Afinal, o domínio da linguagem é o domínio do direito — que não produz efeitos fora daquele.
Em sequência, Paulo de Barros Carvalho funda a Editora Noeses, que passa a ser a casa de centenas de autores — consagrados ou promissores — em publicações relacionadas especialmente ao Direito Tributário, à Filosofia e à Teoria Geral do Direito.
Em 2008, Paulo de Barros Carvalho publica, pela Noeses, seu Direito Tributário, Linguagem e Método, estudo de 1.000 páginas que consolida uma série de reflexões sobre filosofia, lógica e semiótica — todos a serviço da interpretação e aplicação do direito tributário.
À guisa de conclusão
Em 2010, Paulo de Barros Carvalho é empossado como membro titular da Academia Brasileira de Filosofia, na cadeira anteriormente ocupada por Roberto Campos, avô de nosso atual presidente do Banco Central.
Na mesma época, Paulo de Barros Carvalho se torna Professor Emérito da USP e da PUC-SP — título que menos de cinquenta docentes receberam no quase bicentenário Largo de São Francisco e que somente três ostentam na Faculdade de Direito da PUC-SP.
Não há dúvidas, portanto, de que a história do direito tributário, tal como o conhecemos hoje, confunde-se com a história do nosso conferencista, o que me leva a afirmar, com segurança, professor Paulo, que, como tal como seu amado tricolor, também as tuas glórias vêm do passado — e se projetam, com a mesma dimensão do pretérito, também para o futuro.”