PGFN aposta em alta adesão às transações sobre bonificações e desmutualização
16/09/2025
Com cinco editais vigentes e sem previsão de novos neste ano, procuradoria mantém meta de arrecadação em R$ 30 bilhões até o fim do ano
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) acredita que as transações tributárias relacionadas a bonificações e desmutualização da bolsa devem atrair bastante atenção por parte dos contribuintes. Os temas estão entre os cinco editais atualmente abertos no âmbito do Programa de Transação Integral (PTI). Segundo a procuradora-geral adjunta de representação judicial da procuradoria, Raquel Godoy, o alto valor em disputa, a indefinição no Judiciário e o cenário desfavorável aos contribuintes em relação aos assuntos devem impulsionar a procura pelos editais.
Ainda segundo Godoy, o parcelamento de débitos relacionados a preço de transferência também pode ter boa adesão, já que, apesar de o tema já ter chegado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), as turmas se posicionaram, por ora, de maneira oposta. É o mesmo cenário da transação relacionada a ágio, que segundo a procuradora teve alta procura por parte dos contribuintes.
A matéria da desmutualização ainda não chegou a ter decisão de mérito nos tribunais superiores, e os processos tramitam nos tribunais regionais federais (TRFs) e no contencioso administrativo. Já em relação às bonificações, o tema já foi apreciado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas apenas nas turmas, sem julgamento em seção.
Em termo de número de processos, o tema das bonificações é muito disseminado, segundo a procuradora. “É o que vai ter mais processos pendentes de julgamento no Judiciário, e tem um valor alto envolvido. Pensando nisso, tem um potencial grande”, disse.
Segundo ela, o edital sobre desmutualização também deve trazer grande adesão por ser um tema com um cenário desfavorável às empresas nas instâncias de julgamento. “Me parece uma oportunidade muito boa para que façam um pagamento com essas condições boas que a transação de tese traz”, disse a procuradora ao JOTA .
A meta de arrecadação com os editais do PTI em conjunto com a Receita Federal para 2025 é de R$ 30 bilhões, valor que, segundo a procuradora, deve ser alcançado. Até agora, o programa resultou em cerca de R$ 10 bilhões arrecadados, de um total de R$ 22 bilhões negociados. Ainda não há um balanço dos editais em aberto.
As teses
A tese sobre a desmutualização envolve a tributação pelo Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e pela Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre o ganho de capital e a incidência de PIS e Cofins sobre a venda das ações recebidas na reorganização da antiga Bovespa e da BM&F. A mudança legislativa que instituiu o processo de desmutualização transformou as bolsas, antes entidades sem fins lucrativos, em sociedades anônimas de capital aberto, convertendo os títulos patrimoniais exigidos das corretoras em ações.
No Carf, o entendimento consolidado é desfavorável aos contribuintes: a 1ª Turma da Câmara Superior entende que a operação gerou ganho de capital sujeito ao IRPJ e à CSLL, enquanto a 3ª Turma decidiu que a venda das ações configurou receita tributável, sujeita à incidência de PIS e Cofins.
Já na tese das bonificações, a controvérsia trata da incidência de PIS e Cofins sobre valores concedidos por fornecedores ao varejo em forma de bonificações e descontos condicionais. O Carf costuma entender que não se tratam de descontos incondicionais, pois estão ligados a contrapartidas como reembolso por distribuição, garantia de margem ou abertura de lojas. No Superior Tribunal de Justiça (STJ) há divergência entre as turmas: a 2ª entende que os descontos incondicionais precisam constar na nota fiscal (REsp 2.090.134), enquanto a 1ª já decidiu que descontos comerciais condicionados não constituem receita para o varejista e, portanto, não devem ser tributados (REsp 1.836.082).
Editais abertos
Os cinco editais em vigor tratam de desmutualização, bonificação, PLR, preço de transferência e stock options, sendo este último o de menor potencial de adesão. Isso porque o STJ decidiu no Tema 1.226 que os planos têm natureza mercantil e que o IRPF só incide na revenda das ações, se houver ganho de capital, entendimento que, segundo a procuradora, reduz a atratividade do edital para os contribuintes. O primeiro edital sobre a tese registrou baixíssima adesão.
Ainda assim, há expectativa de maior interesse no segundo edital, que abrange a discussão sobre contribuição previdenciária. O tema foi afetado para julgamento repetitivo recentemente no REsp 2.070.059/SP, ainda sem data prevista para análise pela 1ª Seção do STJ. Trata-se de uma matéria que pode estimular novas adesões, segundo Godoy.
“Na contribuição previdenciária, a gente trata de aspectos que não foram tão aprofundados no julgamento do [Tema] 1226. A gente tem a chance de reinaugurar discussões importantes sobre o caráter remuneratório [das stock options]”, disse.
No caso do preço de transferência, Godoy sustenta que é justamente a indefinição no Judiciário que sustenta o lançamento da tese no PTI. “É uma bola dividida”, disse ao citar como exemplo o edital que tratou de ágio e que, segundo ela, registrou alta adesão. “Tinha uma decisão de 1ª turma e uma de 2ª turma, cada uma indo para um caminho [diferente]. A nossa matéria-prima é a indefinição”, afirmou.
As turmas do STJ divergem sobre a interpretação da Instrução Normativa SRF 243/2002, que trata de preço de transferência. No AREsp 511736/SP, a 1ª Turma considerou que a norma extrapolou a Lei 9.430/96 e aumentou a carga tributária. Já no REsp 1.787.614, a 2ª Turma validou a instrução, entendendo que apenas detalhou a lei, sem majorar o IRPJ e a CSLL.
No Carf, a posição também se firmou desfavorável aos contribuintes. O colegiado aprovou súmula segundo a qual frete, seguro e tributos incidentes na importação devem ser incluídos no preço praticado para fins de comparação com o preço parâmetro no método PRL, até a entrada em vigor da Medida Provisória 563/2012, convertida na Lei 12.715/2012.
O cronograma de editais divulgado pela PGFN em conjunto com a Receita Federal vale apenas esse ano e não há previsão de novos temas do PTI até dezembro, de acordo com a procuradora. “Não adianta lançar muitos editais atribuladamente, porque isso atrapalha a decisão dos contribuintes”, afirmou.
De acordo com ela, a escolha das teses segue alguns critérios principais: disseminação nos tribunais, valor mínimo de R$ 1 bilhão em disputa, indefinição jurisprudencial e uma tese bem delimitada. Esses critérios, inclusive, limitam o alcance de possíveis editais, como no caso de teses sobre PIS/Cofins, que não podem ser incluídas em edital por se tratarem de uma matéria ampla e sem definição consolidada, segundo a procuradora.
“É preciso ter tese, ter uma discussão jurídica muito delimitada e estabelecida em torno do conceito de faturamento, conceito de insumo”, comentou a procuradora.
O PTI deve ter uma nova fase em 2026, mas os temas ainda estão indefinidos. Godoy explica que será preciso primeiro identificar uma tese delimitada e verificar se ela atende aos parâmetros (se está espalhada em diferentes tribunais, se tem volume financeiro relevante e se há divergência de entendimentos) e só depois, disse, é possível avaliar a viabilidade de novos editais.
Com isso, editais que tratam de Juros sobre o Capital Próprio (JCP), pejotização e incidência de PIS/Cofins nos casos de segregação da empresa para quebra da cadeia monofásica podem ficar para outro momento. Especialmente sobre a pejotização, a procuradoria deve aguardar um posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a matéria para evitar ruídos de entendimento.
Em cinco anos de existência, transação é alvo de elogios, mas traz novos desafios
A transação tributária permaneceu por mais de meio século no papel. O artigo 171 do Código Tributário Nacional de 1966 já autorizava a União, os estados e os municípios a, mediante lei específica, firmar acordos para extinguir litígios tributários com concessões recíprocas. A virada para a realidade veio há apenas cinco anos, com a Medida Provisória 899/2019, e, depois, com a edição da Lei 13.988/2020. Em meio à pandemia, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) trocou um contencioso quase irrecuperável por acordos calibrados à capacidade real de pagamento do contribuinte.
Desde 2020, foram firmadas mais de 650 mil operações de transação tributária, abrangendo desde grandes conglomerados até micro e pequenas empresas. O montante negociado já ultrapassa R$ 500 bilhões em débitos transacionados. É um cenário bem diferente do anterior, no qual imperava a resistência histórica à transação. A oposição ao mecanismo geralmente estava ligada à leitura rígida do princípio da indisponibilidade do interesse público aplicada ao crédito tributário, a ideia de que o gestor não dispor livremente daquele crédito. Qualquer proposta que envolvesse redução nominal do crédito era rechaçada sob o argumento de renúncia fiscal indevida.
Para João Grognet, procurador-geral adjunto de Gestão da Dívida Ativa da União e do FGTS, houve um processo de amadurecimento tanto diante dos problemas dos programas anteriores quanto da própria tarefa de implementar uma política pública baseada em dados. “É um trabalho coletivo, permanente, em constante mudança, fruto dessa escuta ativa que a gente percebeu que deveria implementar, por conta das décadas de negligência da relação entre fisco e contribuinte”, diz.
Em 2024, a PGFN recuperou o recorde de R$ 61,3 bilhões, com um estoque total da dívida em R$ 3 bilhões. A título de comparação, a recuperação em 2016 foi de R$ 14,5 bilhões, quando o estoque total era de R$ 1,8 bilhão. “A gente passou anos, décadas, maltratando a relação fisco-contribuinte. Romper com essa cultura de desconfiança mútua foi muito desafiador”, diz Grognet.
Modalidades de transação tributária
A Lei 13.988/2020 abriu caminho para três modalidades principais. Primeiro, a transação por adesão, em que o contribuinte ingressa em condições padronizadas estabelecidas em edital, voltada principalmente a débitos inscritos na dívida ativa e a situações específicas como calamidades ou crises econômicas. Há também a transação individual, negociada caso a caso com a PGFN, destinada a débitos de maior valor ou complexidade e que exige apresentação de proposta pelo contribuinte ou pelo próprio órgão.
Além disso, há a transação individual simplificada, com procedimento menos burocrático, voltada a débitos de menor valor e contribuintes de menor porte, mas ainda com análise específica da situação econômica. Mais recentemente, foi criada também a transação voltada a litígios com risco jurídico significativo, em que a avaliação da capacidade de pagamento é afastada em favor de uma análise do mérito da tese, permitindo encerrar disputas com base na incerteza jurídica do crédito e não apenas na solvência do contribuinte.
“A PGFN tem utilizado a transação de fato como um mecanismo de recuperação de passivo e tem sido uma via muito interessante para equalizar os débitos dos contribuintes”, diz Mayra Tenório, sócia na asbz advogados. Da resistência até a implementação de mecanismo, novos desafios surgiram, da formulação de métodos para cálculo de capacidade de pagamento (Capag) até esclarecimento de pontos em que ainda paira a insegurança jurídica.
Transação tributária para quem?
Além de vencer a resistência contra a consensualidade, a transação tributária rompeu com outra lógica antiga, a dos programas especiais de parcelamento, como o Refis. Esses programas acabaram funcionando como “refúgios periódicos” para devedores: ofereciam descontos generosos sem distinção de perfil, incentivando o adiamento deliberado do pagamento de tributos. “O Refis era um financiamento que as empresas faziam”, diz Tenório.
Na transação, a avaliação é caso a caso — seja individualmente, seja por parâmetros fixados em edital. Assim, o instituto procura se basear em critérios objetivos, permitindo calibrar as concessões de acordo com a situação econômica e a perspectiva de êxito da cobrança. Essa personalização, ao lado de uma atuação mais dialógica, é vista como avanço em segurança jurídica e como ferramenta de redução do contencioso. Para Gustavo Yunes, da G&H Partners, voltada à monetização de ativos judiciais, a transação “traz um olhar mais profissional de negócios para dentro do âmbito federal”, aproximando a atuação da PGFN das práticas do mercado financeiro.
Assim, o mecanismo de concessão está vinculado a um diagnóstico prévio de recuperabilidade. Quanto menor a chance de êxito na cobrança (seja por fragilidade patrimonial do contribuinte, seja pelo risco jurídico da tese), maiores os descontos e prazos oferecidos. Essa lógica é vista, por alguns, como uma forma de preservar a isonomia: contribuintes adimplentes não seriam prejudicados por renúncias generalizadas, e benefícios seriam restritos a casos em que há real interesse público em encerrar o litígio.
Outros, no entanto, veem o sistema como premiador de maus pagadores, nas sombras dos Refis. Para quem tem um relacionamento melhor com o fisco, “a única vantagem é o pagamento mais alongado”, diz Vinícius Caccavali, do VBSO Advogados. Com a Selic elevada, hoje a 15% ao ano, parcelamentos longos significam custo financeiro expressivo, e, sem descontos relevantes, o incentivo à adesão diminui. “As propostas para empresas saudáveis são irrisórias em termos de desconto de multa e juros, e o saldo devedor continua corrigido pela Selic”, diz Gustavo Yunes.
Nos casos de empresas em crises mais severas, no entanto, a transação tributária pode significar a diferença entre a continuidade e a falência. Mayra Tenório, da asbz, relata que já conseguiu negociar condições que adaptam os pagamentos ao desempenho real da empresa: “Se eu tiver um resultado melhor, eu pago mais”. Cláusulas de variação como essas são vistas como um sinal de confiança mútua, fortalecendo a relação de consensualidade entre fisco e contribuinte.
Problemas de matemática na transação tributária
Além do receio em torno de um novo instrumento, em que as regras do jogo ainda não estão completamente absorvidas pelo mercado, outros pontos aumentaram a resistência do contribuinte à transação tributária em um primeiro momento. O aspecto mais questionado da transação entre advogados e contribuintes é o cálculo da Capacidade de Pagamento (Capag). O modelo inicial, que vigorou entre 2020 e fevereiro de 2024, se baseava essencialmente em dados declarados pelo próprio contribuinte (como faturamento e lucro líquido) e em indicadores contábeis padronizados, extraídos de declarações fiscais e bases públicas, ponderados por índices de liquidez, endividamento e rentabilidade.
Mais tarde, em março de 2024, houve mudança nos pesos do cálculo com a publicação da Portaria PGFN 240/2024, que ampliou a relevância de variáveis ligadas ao fluxo de caixa operacional e reduziu o peso de indicadores contábeis sujeitos à maior volatilidade, como lucro líquido. A alteração também permitiu maior consideração de dívidas não tributárias e de eventos extraordinários que afetem temporariamente a capacidade de pagamento, buscando corrigir distorções que vinham sendo apontadas pelo setor privado e por entidades de classe.
Um dos pontos centrais da metodologia da PGFN para aferir a Capacidade de Pagamento (Capag) é o equilíbrio entre precisão técnica e viabilidade operacional, diz Mariana Lellis, procuradora da Coordenação-Geral de Negociação da PGFN. “São duas metodologias possíveis e elas foram criadas para que a procuradoria conseguisse equilibrar uma estimativa razoável, que realmente correspondesse à realidade na maior parte dos casos, mas que, de novo, viabilizasse a praticabilidade da política pública”. A ideia, segundo ela, é permitir que um universo de cerca de 8 milhões de sujeitos passivos inscritos em dívida ativa possa ser atendido de forma célere, evitando que a política “morresse na origem” por conta de filas e gargalos.
Assim, a PGFN calcula a Capag com base em um modelo matemático-estatístico de regressão linear múltipla, uma técnica estatística para estimar um valor que depende de vários fatores. “A gente olha para trás, com base em alguns elementos de entrada, para estimar elementos de saída, numa análise estatística”, diz Lellis. Essa metodologia busca em diferentes bases de dados o histórico de comportamento do contribuinte para, a partir disso, estimar sua capacidade futura de quitar os débitos.
Segundo Lellis, a aplicação desse método foi decisiva para viabilizar a política: “Com essa análise a gente conseguiu fechar mais de 3,5 milhões de acordos, mostrando que, na maior parte das vezes, existe uma compatibilidade entre essa estimativa e a realidade”. Mas nenhum modelo estatístico é infalível. “Todo modelo está sujeito a outliers, a situações que fogem desse radar”.
Para Gustavo Yunes, a Capag “pode acabar dando um rating que não é a realidade da empresa”, pois ainda não inclui passivos bancários, por exemplo. Assim, a transação tributária prevê a possibilidade de revisão da capacidade de pagamento, para que casos possam ser reavaliados com base em informações adicionais e documentos comprobatórios. Uma possibilidade são laudos independentes, cujo custo pode chegar a R$ 80 mil, o que pode limitar o acesso a empresas maiores.
Além disso, há gargalos operacionais na revisão, com esperas de até um ano pelo desfecho do processo, segundo advogados ouvidos pelo JOTA . Essa análise mais aprofundada da contabilidade e da operação da empresa é um procedimento mais demorado, que busca “alcançar esse equilíbrio entre dar vazão em casos específicos em que aquela presunção não é suficiente ou que o contribuinte não concorda com ela”, diz Lellis, da PGFN.
A heterogeneidade do sistema tributário brasileiro também não ajuda. Há contribuintes submetidos a regimes fiscais diferentes, com periodicidade distinta de entrega de declarações e informações apresentadas em formatos variados. “Então a gente tem que criar um modelo que se aplique a todos eles”, afirma Mariana Lellis. Essa necessidade de padronização explica por que algumas bases de dados não podem ser usadas diretamente, mesmo que, em tese, pudessem refinar a análise.
Como ler o calendário
Outro ponto que ainda gera dúvida entre os contribuintes é o marco inicial para contar o prazo de dois anos de impedimento para nova adesão à transação tributária após a rescisão. A lei estabelece a vedação, mas não detalha com clareza se o relógio começa a correr no momento em que ocorre o inadimplemento ou quando a procuradoria formaliza a rescisão. Na prática, essa lacuna pode criar interpretações distintas e, consequentemente, afetar o planejamento tributário das empresas.
“Faz muito mais sentido que esse prazo seja contado a partir da efetiva rescisão do parcelamento”, defende Mayra Tenório, que já atuou em cinco operações de transação. Segundo ela, há casos em que a empresa deixou de pagar, mas a rescisão formal demorou meses para ser registrada. “Isso gera um lapso que acaba aumentando o período de afastamento, o que não me parece compatível com a finalidade da regra”, diz.
Para a PGFN, a defesa é por iniciar a contagem a partir da rescisão formal, e não do momento em que a irregularidade é detectada. Segundo Mariana Lellis, começar antes disso poderia gerar questionamentos sobre a falta de devido processo. “A crítica dos contribuintes seria: não me é dado o devido processo legal administrativo, não tenho direito a defesa, não tenho direito a purgar essa mora, não tenho direito a regularizar um vício sanável”, explicou.
O procedimento adotado, previsto na Portaria PGFN 6.757, prevê etapas de identificação do vício, prazo de 30 dias para saneamento, possibilidade de apresentar defesa e revisão pela procuradoria. Apenas ao fim desse processo, caso a situação não seja regularizada, é aplicada a consequência da rescisão.
“Não pode haver consequência sem esse diálogo prévio e essa oportunidade de regularização”, diz Mariana. Durante todo o trâmite, a transação permanece ativa: o contribuinte pode seguir pagando parcelas e manter sua Certidão Negativa de Débitos (CND), caso consiga sanar o problema.
Possibilidades para a transação com a reforma tributária
No futuro, ainda há o desafio imposto pela reforma tributária. Segundo João Grognet, a reforma cria tributos de competência compartilhada, os chamados “tributos siameses”. Isso significa que, diante de um fato gerador, haverá simultaneamente a incidência da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). “É muito provável que, se houver o inadimplemento da CBS, vai haver também o inadimplemento da IBS”, diz.
Assim, essa configuração exigirá que a PGFN esteja preparada para atuar de forma coordenada e até “com protagonismo” no tema, diz Grognet. Ele defende a possibilidade de criação de um modelo nacional de aferição da capacidade de pagamento que possa servir de base para a transação de ambos os tributos, evitando lacunas no processo de recuperação. “Estabelecer a recuperabilidade dos créditos é uma função constitucional atribuída às procuradorias. Não é um serviço contábil, como possa parecer. É uma circunstância jurídica”, afirmou.
Maior uniformidade pode ser bem-vinda até mesmo hoje. Os avanços da transação tributária ultrapassaram o âmbito federal para se espalhar pelos estados, embora ainda sem coordenação. Modelos como o paulista e o capixaba mostram caminhos distintos: enquanto um aposta no uso de créditos acumulados, outro amplia prazos e modalidades de compensação. O Acordo Paulista, por exemplo, permitiu o uso de créditos acumulados de ICMS para quitar débitos. Esse tipo de flexibilidade pode servir para ampliar o universo de contribuintes interessados e aumentar a arrecadação imediata. “É essencial que todos os entes entrem na dinâmica da consensualidade, a economia brasileira depende disso”, diz João Grognet. “É uma via de mão dupla: a gente tem muito a ensinar, mas muito a aprender com eles também”.
Movimentos recentes também mostram como a transação pode se sofisticar. Em 2022, com a Lei 14.375/2022, ficou permitida a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL para pagamento de débitos federais em transação tributária. A nova redação passou a autorizar o uso desses créditos para amortizar até 70% do saldo remanescente, após aplicação dos descontos previstos na legislação. Antes dessa mudança, o uso desses instrumentos não constava como opção nas transações federais, sendo tradicionalmente vedado por sua natureza de “crédito contábil”, isto é, não representando valores disponíveis imediatamente para compensar débitos.
No final de 2022, a PGFN regulamentou essa possibilidade por meio da Portaria PGFN 6.757/2022, vinculando o uso dos créditos às transações envolvendo débitos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, e reservando a decisão final ao critério técnico do órgão. A PGFN também ampliou as condições de uso desses instrumentos em programas específicos, como o QuitaPGFN, permitindo a amortização total do saldo devedor com prejuízo fiscal ou BCN, desde que respeitados critérios excepcionais
Também em 2022, a Portaria PGFN 10.826/2022 disciplinou as condições para utilizar precatórios federais na transação tributária. Desde a primeira edição da transação, a procuradoria sinalizou que esses ativos poderiam ser aceitos, por se tratar de créditos de interesse direto da União. Na prática, aceitar precatórios na transação significa que contribuintes podem utilizá-los nos acordos. Em vez de vendê-los no mercado secundário com deságio elevado, o contribuinte pode aproveitá-lo integralmente na negociação, reduzindo o passivo tributário e aumentando a atratividade da transação, diz Gustavo Yunes, da G&H Partners.
“A PGFN vem operacionalizando grandes mudanças”, afirma Gustavo. “O desafio agora é tornar a transação ainda mais previsível, transparente e conectada à realidade financeira das empresas.”
Bárbara Mengado
Editora de tributos
Diane Bikel
Repórter