Reforma: creditamento, split payment e compensação podem gerar judicialização
30/07/2025
Para especialistas, cobrança do Seletivo nas exportações e tributação de doações e transmissões de imóveis também podem levar contribuintes à Justiça
A reforma tributária do consumo nem mesmo entrou no período de transição e há um consenso entre advogados de que ela será fonte de judicialização. Embora se reconheça que as novas regras simplificam o sistema tributário, especialistas elencam pontos que podem levar fisco e contribuintes ao Judiciário em litígios que podem perdurar por décadas. Entre eles estão as regras do split payment, do Imposto Seletivo, o condicionamento do direito ao crédito ao pagamento da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) pelo fornecedor e a falta de um sistema integrado para cobrar e julgar os novos tributos.
Aprovada em dezembro de 2023, a reforma tributária do consumo será implementada entre 2026 e 2033. Na nova sistemática, na esfera federal, a CBS substitui o IPI, o PIS e a Cofins. O IBS, por sua vez, substitui o ISS e o ICMS. As mudanças incluem também o Imposto Seletivo, que tributará bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Agora, a reforma está em fase de regulamentação no Congresso Nacional e no Poder Executivo.
Para advogados, antes mesmo que o novo sistema comece a rodar plenamente, a reforma tributária do consumo apresenta grande potencial de judicialização. Primeiro, pelo simples fato de que haverá dois sistemas convivendo até 2033. Em segundo lugar, pela falta de integração na cobrança e no julgamento dos novos tributos. “Ficaremos muito tempo convivendo com dois sistemas: o atual e o novo. Ambos gerando judicialização, sendo imperioso que seja criado um órgão judiciário especializado. Temos justiça trabalhista, justiça eleitoral e justiça militar, essas duas últimas com pouquíssima demanda, e não temos a justiça tributária”, defende o advogado Leonardo Gallotti Olinto, sócio do Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados.
Falta de integração pode triplicar judicialização na reforma tributária
Quanto à falta de integração para a cobrança e o julgamento dos novos tributos, em relatório apresentado em abril de 2025, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu que a instituição da CBS e do IBS podem triplicar o contencioso judicial. De um lado, cada titular do crédito tributário (estado, município e União) moverá execução fiscal envolvendo um mesmo fato gerador. De outro, pode haver uma multiplicação de ações por parte dos contribuintes, uma vez que cada impugnação deverá ser direcionada também contra estado, município e União.
“A CBS e o IBS são irmãos gêmeos. O que muda é a destinação da arrecadação. Há uma preocupação em torno da possibilidade de vários entes agirem ao mesmo tempo em relação a demandas que deveriam ser unificadas”, afirma o tributarista Rodrigo Lázaro, juiz representante dos contribuintes do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (TIT) e sócio da FCR Law.
Além do volume de demandas, Lázaro destaca o risco de diferentes entes públicos analisarem o mérito de uma mesma controvérsia a partir de perspectivas distintas. O especialista aponta que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), no caso de demandas federais, e o Comitê Gestor do IBS, de estaduais e municipais, podem seguir trajetos distintos nas decisões. A seu ver, há “potencial conflito de interpretações sobre a mesma matéria”.
Creditamento de CBS/IBS deve aumentar judicialização
Gallotti Olinto cita que outra regra com grande potencial de judicialização na reforma tributária é a que condiciona o direito ao creditamento da CBS e do IBS à comprovação de que esses tributos foram pagos na etapa anterior.
O tributarista ressalta que o contribuinte não tem função fiscalizadora e transferir para ele a responsabilidade de saber se o fornecedor pagou o tributo na etapa anterior da cadeia certamente será alvo de judicialização. “O direito ao crédito nasce da incidência do tributo na operação, e não do efetivo pagamento. Essa situação está consolidada na jurisprudência, e a reforma tributária muda o sistema, de forma, a meu ver, ilegal”, afirma Gallotti Olinto.
Impacto do split payment no fluxo de caixa
O advogado Gustavo Brigagão, presidente nacional do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) e presidente honorário da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), avalia que as regras do split payment, sistema que permitirá a segregação dos tributos no momento da liquidação financeira da operação, impactará negativamente o fluxo de caixa das empresas.
Brigagão explica que, se a empresa compra um bem e o paga de modo parcelado, mas o revende à vista, ela receberá créditos da compra que realizou também de modo parcelado (com a liquidação). Porém, terá de pagar os tributos imediatamente, reduzindo os recursos em caixa. A seu ver, há uma ofensa ao princípio da não cumulatividade. “Nessas hipóteses, o débito surgirá antes do crédito correspondente ao imposto na aquisição da mercadoria vendida, gerando uma oneração de fluxo de caixa para o contribuinte que a observação da lógica temporal do princípio da não cumulatividade – de lançamento de créditos anteriormente ao dos débitos respectivos – evitaria”, diz.
Gallotti Olinto analisa que as empresas poderão judicializar esse tema para evitar que, no caso de compra a prazo, a CBS e o IBS incidam diretamente sobre o recebimento do valor à vista pela venda. Ele aponta ainda que pode haver divergência entre o valor do tributo devido que as instituições informam para o fisco e o que o contribuinte entende como correto. “É nesse ponto que vejo grande possibilidade de judicialização, com a quase certa situação que haverá um pagamento a maior de tributo e o contribuinte precisará entrar com repetição de indébito”, diz.
Compensação de créditos de ICMS no pós-reforma
Rodrigo Lázaro destaca a problemática envolvendo a possibilidade de as empresas compensarem créditos de ICMS acumulados no regime atual, até 2032, com o IBS. A reforma tributária definiu que esses créditos poderão ser utilizados para abatimento do IBS ou ressarcidos em até 240 parcelas mensais. O texto constitucional prevê a correção deles pelo IPCA a partir de 2033. “Esse modelo tem sido alvo de críticas por comprometer a liquidez das empresas e desvalorizar os créditos no tempo, especialmente em comparação com os débitos tributários, que continuam atualizados pela Selic”, diz o tributarista.
Ele ressalta ainda a exigência de que os créditos de ICMS sejam homologados pelos estados para, então, poderem ser compensados, “com prazos e critérios ainda indefinidos”. Para o especialista, a ausência de normas claras sobre esse processo dificulta o planejamento tributário das empresas e pode resultar na rejeição ou na postergação do recebimento de valores que pertencem a elas. “Soma-se a isso o risco de autuações futuras, caso se entenda que o crédito foi indevidamente aproveitado, gerando passivos tributários e litígios administrativos e judiciais”, afirma Lázaro.
Imposto Seletivo
Outro ponto levantado por especialistas é a falta de critérios claros para definir as operações sujeitas ao Imposto Seletivo. Brigagão considera, por exemplo, que há uma ofensa à imunidade tributária da exportação com a cobrança do tributo sobre o envio de minérios ao exterior.
Lázaro, por sua vez, avalia que, embora o Imposto Seletivo devesse ter finalidade extrafiscal – para desestimular o consumo de produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente –, ele é usado com objetivo arrecadatório. “A redação aprovada amplia o escopo e transforma o IS em uma fonte relevante de arrecadação, incidindo sobre setores estratégicos como mineração, siderurgia, bebidas e petróleo e gás”, diz.
No caso do minério de ferro, por exemplo, ele afirma que a tributação afetará diretamente a siderurgia, com o repasse na alta do custo nos preços e impacto sobre setores como de automóveis, bens de capital e embalagens. “A base constitucional do Imposto Seletivo poderá ser questionada por desvio de finalidade (extrafiscalidade), abrindo brecha para ações diretas de inconstitucionalidade e disputas sobre o alcance do tributo”, prevê Lázaro.
Nova guerra fiscal
Se, por um lado, a mudança da tributação da origem para o destino é elogiada pela perspectiva da justiça tributária, por outro, ela pode abrir uma nova frente de guerra fiscal entre estados e municípios. Com a reforma tributária, o IBS e a CBS serão recolhidos no local de destino da operação, ou seja, onde os bens são vendidos ou onde os serviços são prestados. Hoje, esse modelo é híbrido, mas a maior parte da arrecadação fica na origem, isto é, no local da produção do bem ou do estabelecimento do prestador de serviços.
Na prática, com a nova sistemática, o dinheiro fica no local onde vive a pessoa ou empresa que pagou o tributo. No entanto, em vez da antiga guerra entre os entes federativos realizada por meio da redução de alíquotas, de modo a incentivar a instalação das empresas, pode surgir uma nova guerra por meio de incentivos não tributários. Exemplos são benefícios administrativos, facilidades regulatórias, acesso a infraestrutura ou doações de terrenos, com o objetivo de atrair sedes administrativas ou filiais de grandes empresas. O objetivo já não seria ficar com a arrecadação imediata do IBS e da CBS, mas aquecer a economia, gerar emprego, consumo e, consequentemente, arrecadação.
Para Rodrigo Minhoto Ferreira, especialista em Direito Tributário do escritório FCR Law, a criação de uma nova guerra fiscal pelos entes subnacionais pode ser mais um foco de contencioso. Ele lembra que a Emenda Constitucional (EC) 132/2023 consagrou princípios como o da justiça tributária e da cooperação, que podem ser utilizados por fisco e contribuintes para questionar novos incentivos fiscais ou extrafiscais. “Pode ser que a gente veja uma guerra fiscal 2.0 mais para frente”, diz o advogado.
Tributação de doações e transmissões de imóveis
Brigagão questiona ainda a cobrança da CBS e do IBS sobre doações e sobre a transmissão da propriedade de bens imóveis. No primeiro caso, o tributarista afirma que haverá uma invasão da competência constitucional exclusiva dos estados para tributar as doações, uma vez que elas deveriam ser sujeitas exclusivamente ao ITCMD. O artigo 5º da Lei Complementar 214/2025 determina a cobrança da CBS e do IBS sobre o fornecimento de bens e serviços de modo não oneroso – ou seja, sem um pagamento da outra parte – ou a valor inferior ao de mercado.
No segundo, envolvendo a cobrança da CBS e do IBS sobre a venda de imóveis, a avaliação é de que há uma invasão da competência exclusiva dos municípios, pois as operações deveriam estar sujeitas apenas ao ITBI.